Eu ia começar esse texto dizendo que eu lembro exatamente quando comecei a ter problemas de audição, mas a verdade é que eu não lembro. A maioria das pessoas não lembra. Nesse sentido, é muito parecido com um problema de visão como miopia (que eu também tenho): um dia o letreiro do ônibus lá na esquina está nítido, no outro já não está. Muitas vezes você só se dá conta quando tem que franzir o rosto inteiro pra conseguir distinguir uma letra da outra e mesmo assim, ainda erra e pode ir parar num lugar desconhecido. A diferença é que quando você começa a perceber que não está enxergando direito, a hipótese “talvez eu esteja ficando louca” não costuma passar pela sua cabeça. Você aceita, como um fato concreto: preciso ir no oftalmologista, preciso de óculos, não estou enxergando bem e vamo seguir a vida.
Como qualquer mulher, eu achei que estava louca várias vezes e fui tratada como louca por amigos, colegas, conhecidos e desconhecidos. No começo, na verdade, era uma piada. Contei diversas vezes em mesas de bar sobre aquele vez quando eu tinha dezoito anos, ainda não tinha começado a faculdade e queria muito trabalhar pra ter meu dinheiro e conseguir algum respiro na relação difícil com a minha mãe. Fiz testes e entrevistas para trabalhar com telemarketing, como qualquer outra pessoa da minha idade sem nenhuma experiência profissional nos anos dois mil e dez e cheguei na última etapa, o teste com fone de ouvido simulando um atendimento. Não só não passei, como a moderadora do teste me recomendou fazer um exame auditivo. O lado direito era o pior.
Quando eu conto essa história, enfatizo a esperança boba que eu tinha em ser contratada, o “sonho” de trabalhar pela primeira vez, ainda mais com algo tão insalubre quanto telemarketing e o quão frustrada eu fiquei depois que não consegui. As pessoas costumam rir porque, modéstia à parte, se tem uma coisa na qual eu me especializei é em fazer exatamente esse tipo de humor autodepreciativo. Veja só, eu tentei uma coisa e falhei, mas não era lá a melhor coisa do mundo, então tudo bem, né? É engraçado. A parte da história em que eu tinha só dezoito anos e já não estava ouvindo bem o suficiente pra ser reprovada num teste que raramente é exigente costuma passar batida. A minha dificuldade auditiva, com o tempo, virou uma característica peculiar, curiosa e várias vezes, o alvo da piada dos outros. Existe uma ideia de que se eu estou rindo também, isso te autoriza, de alguma forma, a falar verdadeiras barbaridades como se fosse só uma brincadeira inocente.
Eu só uso fone de ouvido de um lado (o esquerdo, o menos pior), e isso é engraçado. As pessoas me chamam no trabalho, às vezes falando bem alto, e eu não escuto, isso é engraçado. Preciso pedir pras pessoas repetirem uma, duas, três vezes o que estão falando e ainda não consigo entender direito a frase, e isso é engraçado. Alguém no trabalho fala algo pra mim durante uma reunião, eu não entendo, a pessoa desiste do que tinha me pedido e vai fazer ela mesma. Isso é engraçado. Viajo pra fora do país e fico ansiosa por não conseguir sequer ouvir as pessoas falando comigo para além da dificuldade com a língua estrangeira. O recepcionista do hotel pergunta pro meu namorado se eu tenho algum problema mental, porque eu estou falando a língua, mas não entendo o que ele diz. Isso já não é tão engraçado. Muitas vezes, em várias ocasiões, preciso que meu namorado repita o que outra pessoa me perguntou ou até mesmo me avise que tem alguém falando comigo porque eu não percebi. Quando estou sozinha, sem ele, me sinto como se ouvisse ainda menos. Começo a separar mentalmente as pessoas que falam baixo demais e evitar falar com elas. Fujo de reuniões presenciais, na verdade, o próprio trabalho presencial me causa ansiedade em pensar que eu não vou ouvir ou entender o que está sendo dito. Aprendi a rir quando todo mundo está rindo mesmo que eu não tenha sequer ouvido a piada e a desistir de tentar entender quando o ambiente está barulhento. Me sinto dependente e alienada do resto do mundo. Ouço televisão no volume 50, 60 e 70 e preciso colocar legenda em qualquer coisa, mesmo que seja um filme nacional. As pessoas no início acham graça, mas aos poucos alimentam uma suspeita oculta de que eu entendi sim, ou que eu estou fazendo de propósito ou simplesmente desistem de falar porque cansa ficar repetindo. À essa altura eu já estou achando que essa história não tem tanta graça assim.
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Mesmo assim, eu só fui ao otorrino porque meu namorado falou ‘‘estou preocupado, acho que você está piorando” e sou imensamente grata a ele por isso. Eu já havia feito audiometria em 2021 e os resultados já haviam sido negativos, mas aquele ano foi horrível, era o meio de uma pandemia e eu só empurrei com a barriga. Na minha casa, enquanto eu crescia, saúde não era uma coisa tão levada a sério assim, a menos que fosse uma emergência. Tudo que caía nessa gaveta do “seria bom olhar isso, mas provavelmente eu não vou morrer” era adiado, esquecido. Enquanto isso, todas as dores do mundo podiam ser resolvidas com neolsadina e chá de boldo.
Tenho pensado muito nisso nos últimos meses: o quanto a negligência consigo mesma é uma prática cuidadosa, aprendida por anos a fio, desde criança, e principalmente, a como me livrar dela antes que faça mais estragos. Aprender a gostar de si mesma é também aprender a cuidar de si mesma, muitas vezes de maneiras que você nunca foi cuidada antes pelos outros.
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Do diagnóstico pra cá aprendi muitas coisas. Aprendi o nome da minha doença (otoesclerose) e que ela é genética e degenerativa, portanto, não tem cura e tende a piorar com o tempo. Aprendi também que as pessoas não fazem ideia do que significa ‘‘não tem cura’’ e perguntam toda hora se a cirurgia que a médica me indicou vai curar a doença pra sempre e se ‘‘vai ficar tudo bem, né, vai dar tudo certo’’, mas raramente querem ouvir a resposta que é um grande ‘‘eu não sei’’. As duas alternativas possíveis para o nível e o tipo da perda auditiva que eu tenho eram os aparelhos auditivos, descartados a princípio por ser uma solução temporária e acompanharem certo estigma, e a cirurgia de retirada do osso do estribo calcificado (o menor do corpo humano, bem miudinho) e a colocação de uma prótese no lugar, essa sim, uma opção com ganho maior a longo prazo. Mas o que eu mais pude reparar na maioria das vezes que contei sobre a doença para amigos e conhecidos é que mesmo que você esteja sofrendo, no fim, elas buscam um conforto para si mesmas. Veja bem, é um grande ponto fora da curva: eu tenho só trinta e três anos e perdi uma boa parte da minha audição. Não foi resultado de nenhuma exposição extrema ao som, abuso de substâncias, dieta, falta de exercício físico, algum fator que possa ser controlado. Eu simplesmente dei o azar de nascer assim, algo que pode acontecer com qualquer um, a qualquer momento. Então quando você leva essa notícia pra alguém que gosta ou simpatiza com você, o que é pedido muitas vezes é que se assegure que vai ficar tudo bem no final, mesmo que talvez não vá. O problema é que eu não sou a pessoa que acha que vai ficar tudo bem sempre, ainda mais numa situação completamente desconhecida como essa — nem todo amor do mundo vai me fazer querer mentir só pra você ficar confortável. Se serve de consolo, eu também não estou.
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Quando eu dei a notícia pra minha mãe, perguntei se ela já tinha ido ao otorrino verificar a própria audição, já que fala num volume altíssimo desde que eu consigo me lembrar, e a doença é genética. Ela me respondeu que havia feito uma audiometria recente e a sua audição é perfeita, “100%”, nas suas palavras. Quando comentei com a minha médica sobre o fato, ela perguntou se eu tinha certeza que ela havia feito mesmo o exame, mas é claro que eu não tenho. A médica reforçou, preocupada, que a probabilidade de mais alguém na minha família próxima ter a doença é grande: meu pai, minha irmã, talvez? E que eles deveriam todos fazer os exames o quanto antes, que audição é coisa séria, já bastava a minha própria negligência. Eu concordei, mas esse é exatamente o tipo de coisa que eu não consigo explicar pra estranhos, ainda mais estranhos de outra classe social: negligência com a própria saúde é uma tradição de família, além do fato deu não ter contato regular e afetuoso com nenhuma dessas pessoas, por um milhão de motivos que não vem ao caso. É um pouco mais complicado do que parece, doutora.
Lembro da minha mãe falando alto, quase gritando em praticamente qualquer situação social. Berrando no telefone, dentro do ônibus, todas as pessoas ouvindo a conversa inteira e rindo. Lembro dela nunca entender o que era falado de primeira, o “o quê?” pendurado na língua praticamente como um reflexo involuntário. Ela sempre se justificando ‘‘eu não ouvi’’ ou ‘‘você fala baixo demais’’, ‘‘é que eu sou meia surda’’. Quando eu me mudei pra São Paulo, ela costumava me ligar tarde da noite, enquanto cozinhava, e deixar o celular no viva voz. Esse sim era um trabalho hercúleo, quase uma esquete de humor pastelão: o barulho da faca batendo na tábua de carne, eu tentando falar alto e entender o que ela falava, ela sempre um passo atrás do que eu estava dizendo ou desistindo e fingindo ouvir a conversa inteira. Eu desligava o telefone me sentindo exausta, como se tivesse corrido uma maratona. Perder a audição é perder a sutileza e as nuances de muitas formas: quando você fala muito alto ou precisa repetir muitas vezes a mesma fala, o conteúdo em si se simplifica, se limita. É preciso ser óbvio, objetivo, e muita coisa se perde no caminho. É como um jogo.
Tentativa número 1: “Aí eu falei pra ela que eu adoro a mãe dela, mas ela quer ficar conversando comigo no telefone até na hora do trabalho.”
Tentativa número 2: “Então, a mãe dela fica me ligando no trabalho, me incomoda um pouco”
Tentativa número 3, final: “A mãe dela é carente, eu não aguento mais.”
Um ponto positivo é que pra pessoas prolixas como eu, às vezes faz bem perder um pouco de firula e ir direto ao ponto. Mas em muitas outras, uma boa história sem firula narrativa fica murcha e chata e sequer vale a pena ser contada.
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Eu perdi muitas coisas junto com a perda da audição, mas como é comum, só percebi tempos depois. Não consigo lembrar a última vez que alguém cochichou ou me contou um segredo em voz baixa. Na maioria das vezes, em ambientes barulhentos, eu preciso me esforçar pra fazer leitura labial e me concentrar no que a pessoa está falando, para poder entender, mas é frequente que eu peça pra repetir algumas vezes, pra falar em alto e bom som, tirar a mão ou a máscara da boca. Com frequência, o diálogo é simplificado, suas nuances e arestas perdidas em nome da compreensão. Às vezes as pessoas só desistem de falar ou eu desisto antes. Rio amarelo, fingindo que entendi, mas provavelmente perdi alguma sutileza. São muitos os ‘‘nada’’ que na verdade eram alguma coisa, mas o interlocutor achou que era tão miúdo, nada muito importante que merecia ser repetido. Imagina que pavor viver falando só coisas importantes.
Pra ser justa, acho que ganhei algumas coisas também. Passei madrugadas obcecada com a doença, lendo artigos e papers científicos, prognósticos, dados, detalhes, tudo que existe de disponível na internet para alimentar a cabeça de um hipocondríaco cronicamente online. Mas acredito que o que aprendi vai ser útil no futuro, já que essa condição exige um acompanhamento perene para entender a sua evolução, além de já ter alertado vários amigos sobre ir ao médico caso sintam o primeiro sinal de perda auditiva — importante não se deixar acostumar ou normalizar esse tipo de problema. A maioria dos casos mais comuns têm tratamento, a surdez nem sempre é irreversível. Também foi fundamental entender o que era, em termos práticos, a surdez e me reconhecer como uma pessoa surda, inclusive portadora de deficiência e o que isso significava.
Mas acho que o principal mesmo é algo que talvez tenha passado batido pra várias pessoas, mas pra mim ficou muito óbvio: nem toda tragédia pessoal pode ser transformada em piada, nem mesmo uma piada ruim. Tem vezes que a vida é horrível ou assustadora ou monótona e enfrentar isso atravessando pelo meio, em vez de fugir ou amortecer, é bem mais digno. Sorrir amarelo e fingir que entendeu do que os outros estão rindo cansa muito e essa talvez essa seja a melhor hora pra parar.
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Em Olinda, Pernambuco, onde eu nasci e vivi até adulta, mouca é um termo chulo, pejorativo para chamar uma pessoa de surda. Da maneira como eu conheço, a palavra carrega também uma certa presunção de insolência, de petulância infantil, quase uma acusação de culpa. Uma ideia de que você, criança ou adulta, não é surda, não pode ser surda, pelo menos não de verdade. Só escolheu não ouvir de propósito pra irritar sua mãe.
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PS.: Comecei a escrever esse texto em abril de 2023, quando recebi o diagnóstico da otoesclerose e só consegui terminar agora, em janeiro de 2024, na recuperação da cirurgia de prótese auditiva. Ele demorou provavelmente o tempo certo pra existir porque eu passei muitas fases enquanto escrevia, mas senti que agora era o melhor momento. A cirurgia foi bem-sucedida, mas ainda não sei o resultado dela em termos de ganho de audição: preciso esperar pelo menos um mês de uma cicatrização lenta e dolorida para refazer os exames, mas já me sinto muito realizada de ter podido fazer o procedimento. E de ter finalmente cuidado de mim mesma.
Pensei muitas coisas lendo, mas acho que o fato de que outras pessoas, que como você fez, vão buscar informações na internet e vão cair aqui no texto, vai dar uma luz para elas. Desejo que sua recuperação seja a melhor possível 😉
oi Gabi, fico feliz que tenha chegado o momento certo de finalizar esse texto. cliquei no email rapidinho e não consegui mais largar. me pegou muito o que você escreveu sobre as sutilezas da vida e do aprendizado de nem toda tragédia pessoal virar uma piada 🤍