Tem essa pergunta que assombra o Carnaval enquanto manifestação cultural, provavelmente desde o seu nascimento, que é: pra quê?
Esse questionamento aparentemente simples costuma embasar falsamente argumentos moralistas encobertos de preocupação social. Ora, se o povo precisa de comida, segurança, educação e tantas coisas mais, pra quê o carnaval existe? Pra quê gastar tempo, dinheiro, espaço mental nessa festa? Logo nessa, que não é religiosa, nem nada, não tem um motivo maior pra existir? É a festa da carne afinal, libertina, suja e principalmente, desnecessária. Pra quê?
Junto com esse uso, a mesma pergunta aparece de outra forma, talvez um pouco mais sutil, que eu desconfio que venha do mesmo lugar. Na época pré-carnaval, quando a festa vem se aproximando, a internet costuma ser soterrada em uma avalanche de criatividade. Principalmente criatividade feminina. Ideias e inspirações de maquiagens, fantasias, adereços, conceitos, cores e junto com elas, tutoriais práticos de como juntar um pouquinho de cola quente, um tecido brilhoso e criar algo novo, incrível. Não preciso dizer que como grande fã do carnaval e de trabalhos manuais, eu sou obcecada por esses tutoriais, mesmo quando eu nem vou colocar nenhum dos ensinamentos em prática. Só assistir o processo e o resultado final já me faz feliz o suficiente. Mas não é assim pra todo mundo, porque nos comentários desses vídeos, tem um tipo recorrente, a variante da pergunta inicial, ele mesmo, o clássico: isso tudo pra quê? Isso tudo pode ser qualquer coisa e não depende do esforço empreendido, pode aparecer até no vídeo mais simples possível ensinando a dar um laço numa fita de cetim. O problema, veja bem, não é o ‘‘isso’’, nem o ‘‘tudo’’, mas sim, você adivinhou, o ‘‘pra quê’’.
Essa obsessão com a utilidade do que fazemos e até a nossa própria, enquanto seres humanos, não é exclusiva da internet, mas nela tem se espalhado como uma doença. Essa lógica muito capitalista e neoliberal não é novidade, mas ela tem mudado de forma. Ela pode não necessariamente estalar o chicote e obrigar você a produzir pra justificar sua existência no mundo, mas ela se disfaçar de posts bonitinhos no Instagram te ensinando a otimizar o seu tempo disponível, a qualquer momento, em qualquer lugar.
Ouça um podcast enquanto lava a louça, mas não um de entretenimento: isso não, algo útil, talvez um de política que possa te atualizar sobre os conflitos mundiais ou uma conversa em outra língua pra você ir treinando o espanhol. Durante o exercício físico, a mesma coisa, a ideia é treinar mente, corpo e mais um território à sua escolha, tudo a mesmo tempo, sem deixar nenhum prato cair. Na verdade, a própria rotina de exercícios vem como uma forma útil de preencher seu tempo livre: em vez de ficar enrolando na cama aqueles minutinhos, acorde mais cedo e corra pra academia. Tem um tempinho a mais no almoço? Por que não fazer um cardio rápido, assim você já adianta o treino do dia. Deu vontade de ligar praquele ex filha da puta pela décima vez? Cabeça vazia, oficina do diabo. Vai lá fazer um treino de superior que a vontade passa e pelo menos você tá fazendo algo de útil pra si mesma. E por aí vai.
Um dos momentos mais emblemáticos dessa necessidade de preencher o tempo, pra mim, foi a pandemia em 2020. De repente, muita gente ao meu redor começou a fazer mil cursos, aulas, adquirir hobbies, praticar exercício em casa e um milhão de outras coisas abruptas com a justificativa de que o tempo estava passando. Elas iam passar um ano presas em casa e era impensável ficar simplesmente sem fazer nada (nada além de atravessar um evento histórico, um trauma coletivo, mas fora isso, nada). Da mesma maneira, eu já senti essa sensação e já ouvi de amigos a mesma percepção sobre breves períodos de desemprego. Se eu não estou vendendo oito horas (dez, doze, ou mais) do meu tempo todo dia para o trabalho, se eu não já acordo afogada em demandas e pautas, se eu removo o trabalho formal e todas as suas implicações da minha vida mesmo que por duas semanas, de repente, bate um vazio, um senso de irrelevância e inutilidade. Quem eu sou, afinal, se eu não sou útil? Pra quê eu sirvo então? Pra quê eu estou vivo?
-
A criatividade e a inspiração são coisas que eu, enquanto aspirante a escritora, costumo perseguir, mas às vezes elas fecham a porta na minha cara. Como muitos artistas, nessas horas, eu tendo a lembrar da infância, quando elas vinham tão facilmente, sem que eu precisasse pedir. Quando você é criança, a criatividade é, na maioria das vezes, incentivada, estimulada o tempo inteiro. Uma criança imaginativa pode ser muito engraçada, até desconfortável, mas definitivamente especial. E é também o que une a nós todos: até uma certa idade, tudo bem prum menino sonhar em ser astronauta tanto quanto tudo bem uma menina sonhar em ser médica. Mas basta crescer um pouco que começam as regras e papéis de gênero a se cumprir compulsoriamente. E nada mata mais a criatividade do que um bom conjunto de regras.
Pros homens heterossexuais, crescer é muitas vezes equivalente a ter que matar aquele menino criativo que um dia eles foram, porque a criatividade é historicamente associada ao feminino e/ou ao queer. Ser um homem hetero e viril, um macho, significa muitas vezes se afastar completamente do lúdico e se associar ao concreto, ao tangível, ao prático. É por isso que não tem nada mais triste do que ir a uma festa à fantasia, de carnaval ou halloween, seja do que for, e ver um homem hetero desconfortável, vestido de preto, sentado num canto ao lado de uma namorada belíssima, fantasia da cabeça aos pés, solar. Ele explica, tímido, que odeia se fantasiar, odeia maquiagem, odeia qualquer coisa colorida, mas é de se pensar que nossos gostos não nascem no vácuo. Nós não amamos ou odiamos algo simplesmente porque queremos. Na maioria das vezes, esse gosto foi imposto, até mesmo da maneira mais violenta possível. Uma porta que uma vez fechada, não abre mais nem que você queira muito.
Enquanto isso, a criatividade é esperada e até exigida das mulheres como se fosse uma habilidade natural, comum ao gênero. Se você é mãe, em algum momento vai ser cobrada de pensar em festas infantis, fantasias, enfeitar lancheiras, escolher a cor do quarto do bebê e tantas coisas mais. Se é esposa ou namorada, idem. Combinar as cores das suas roupas pra estar sempre apresentável, entender o mínimo de moda e maquiagem, tendências, formas, padrões e ainda ser capaz de oferecer dicas e conselhos aos outros. E se você se recusar a participar desse papel, de uma forma ou de outra, a conta chega. Ninguém perguntou se você sabe, se você gosta, se você quer. É intrínseco à experiência feminina ser pelo menos um pouco criativa e claro, habilidosa para colocar tudo isso em prática, geralmente de um jeito útil para o mundo. Não é um hobby nem uma expressão artística, mas uma ferramenta, um modo a mais de servir.
Enquanto eu crescia, observei a minha mãe, que desenha, pinta, cola, costura e esculpe usando sua própria criatividade como uma técnica de sobrevivência das mais inteligentes possíveis. Se faltava dinheiro no mês, ela fazia festas infantis na vizinhança, do tema que você escolhesse, com arcos de balões e personagens de E.V.A. Ou vendia ovos de páscoa caseiros, decorados. Ou panos de prato pintados à mão. Ou rosas feitas de sabonete pro Dia das Mães na escola. Já contei parte dessa história em outro texto aqui da newsletter, mas tive festas com temas de chiclete, tropicais, hippies e muito mais, todas feitas por ela, com pouquíssimo dinheiro. Acho, que além da forma mais óbvia, a criatividade, pra quem não tem muito, é também isso: mesmo nas piores dificuldades, ser capaz de imaginar caminhos e soluções, dar um jeito, fazer uma festa.
-
Voltando ao carnaval, acho que uma parte essencial que escapa às pessoas que perguntar o tal ‘‘pra quê isso tudo?’’ é, como falei ali em cima, o prazer do processo em si. Sim, admirar o resultado é satisfatório, mas a verdadeira graça está no durante. O começo de tudo, imaginar o que você quer e pensar nos materiais que precisa para chegar lá. E depois, o fazer: colar bichinho por bichinho num top, bolinha por bolinha num chapéu, pérola por pérola num óculos. A repetição, a construção das etapas, os obstáculos no meio do caminho, encontrar uma solução, continuar, até se queimar com a cola quente. É terapêutico, mas é mais do que isso. É a sensação palpável de que eu estou fazendo algo com o único objetivo de me fazer feliz. Não é pra vender, não é pra ganhar dinheiro, não é pra agradar os outros, não é pra obedecer alguma regra. A falta de propósito, a ludicidade envolvida, me faz feliz simplesmente por ser. Sem nenhum fim em si mesmo.
Pra mim, esse também é o ponto do carnaval, além de ser uma festa do povo, expressão cultural, etc. São alguns dias no ano em que nos permitimos imaginar, criar e festejar sem nenhum objetivo místico ou religioso, sem propósito definido, sem utilidade nenhuma além do divertimento, do prazer. As horas são todas preenchidas, não sobra, mas às vezes pode faltar. Pra quê isso tudo, você pergunta. Provavelmente pra nada, mas é justamente quando eu corto toda a minha utilidade pro mundo, o que sobra, inútil e lúdico, imaginando, cortando e colando, essa é quem eu na verdade sou. E acho que esse é o cerne do Carnaval, mas também de tantas outras coisas: a completa inutilidade do que não é prático nem necessário, mas simplesmente existe e pode ser bonito demais.
Culturas ocidentais acreditam que nós devemos estar vivos por um propósito. Trabalhar, ganhar dinheiro. Algumas culturas indígenas acreditam que nós estamos vivos da mesma forma que a natureza está viva: para estar aqui, para ser bonita e estranha. Nós não precisamos realizar nada para ser válidos na nossa humanidade.
Amei muito essa edição! Obrigado por isso, senti como um abraço quentinho.
Perder-se só pelo prazer de se perder, sem cobranças, culpas ou expectativas. Que vida! Eu quero.