A minha cena favorita de Barbie (o filme da década, o evento cultural, o cataclisma de marketing que você não tem como ter passado imune nesse ano de 2023) está nos trailers e foi a responsável por me fazer ficar obcecada pela mera ideia do filme (isso e a direção da Greta Gerwig). Logo nos primeiros minutos do longa, numa referência muito óbvia a 2001 - Uma Odisseia No Espaço (1968), meninas brincam com bonecas que imitam bebês no início dos tempos. Elas estão casualmente treinando para serem mães. Lavam as roupinhas, ninam e passeiam de carrinho com suas filhas de plástico. Parecem entediadas e um pouco exaustas. A narração da Hellen Mirren brinca com essa possibilidade: ser mãe só é divertido por um tempo, pergunte à sua mãe. Até que, de repente, uma das garotas observa hipnotizada um estranho objeto. É a Margot Robbie de dois metros de altura, usando o clássico maiô preto e branco, um óculos e uma piscadinha. Um boneca, mas não como as outras. Dessa vez ela é uma mulher. Isso é o suficiente para o resto da história, que você já sabe: as meninas quebram suas bonecas-bebê e a Barbie projeta a sombra que iria mudar a vida de todos nós, pra sempre.
Assisti essa cena algumas muitas vezes enquanto esperava a estreia de Barbie e mesmo depois de ver no cinema, confesso, sem tanto impacto quanto deveria (eu queria nunca ter visto antes) e continuo achando uma das coisas mais geniais já feitas no cinema recente. Sério. Esse breve momento captura muito brilhantemente aquilo que é tão difícil explicar sobre um pedaço da existência feminina. Afinal, não tem nada mais feminino do que ser obcecada por outra mulher, em todos os tamanhos, materiais e partes adicionais vendidas separadamente.
Quando eu tinha nove ou dez anos, tive um breve momento de preocupação sobre não ser feminina o suficiente. Disseram que eu parecia um menino na escola, bem na época que era moleca, brincava com os meus amigos, corria durante o recreio inteiro. Era o início dos anos 2000 e o medo de se descobrir uma menina masculinizada, ou seja, sapatão, era alimentado diariamente pela mídia. Poucos anos antes, em 1998, o casal lésbico formado por Cristiane Torloni e Silvia Pfeifer foi morto numa explosão de shopping na novela Torre de Babel, da Globo, por rejeição do público (eu posso já ter mencionado esse fato em outro texto da newsletter porque ele foi meio canônico na minha vida de criança noveleira). Naquela época, eu, que já tinha minhas dúvidas sobre gostar de meninas de um jeito um pouco diferente do que as minhas amigas gostavam, senti um frio na barriga ao ouvir aquela acusação terrível. Será que todo mundo sabia então? Lembro de ter perguntado para minha tia se eu parecia um menino, ao que ela me tranquilizou: você é a menina mais feminina do mundo inteiro. O que não era verdade, mas foi bom ouvir naquele momento, porque acalmava boa parte das dúvidas que tiravam meu sono à noite. Talvez eu não fosse tão diferente assim então. Talvez eu fosse igualzinha às outras meninas. (No futuro, eu ia descobrir que era bissexual, logo, diferente e igual à muitas outras meninas).
Tive muitas bonecas de imitação da Barbie, mais baratas e genéricas, mas só uma Barbie de verdade que só chegou quase tarde demais. Era uma Barbie Sereia, cujo cabelo loiro tinha mechas rosa que mudavam de cor se você penteasse com a escova especial no sol. Não era nenhuma Dua Lipa, mas eu fiquei encantada. Esperei muito por essa Barbie, então ela era especial, bem cuidada, quase intocável. Já as suas amigas menos afortunadas tiveram um destino comum naquela época: cortes e lavagens de cabelo especiais nos seus fios de náilon, tatuagens de caneta colorida pelo corpo inteiro, pezinhos de plástico mastigados e, é claro, namoraram com frequência entre si, todas elas numa orgia infinita, sem nenhum Ken ou Max Steel à vista. No filme, esse impulso de torturar sua Barbie é chamado de “brincar demais” e é isso que origina a Barbie Estranha.
“Barbie was for ripping apart and putting inexpertly back together. She was for removing heads and limbs. She was for microwaving. She was for chopping off her doll hair. She was for doll orgies. She was an ersatz body whose purpose was to allow her owner room for experimentation. As Jezebel put it in 2007, “Growing Up, Everyone Did Dirty Things With Their Barbies.”
[…]
“I witnessed my sister and her friends do some stuff with those Barbies, and I think we all did,” said Kate McKinnon in a June interview with Fandango, widening her eyes at the camera in a way that suggested that the “stuff” was probably pretty dirty. Which isn’t a bad thing, McKinnon insisted: “It’s imagination, it’s a way of expressing your innermost desires, and things that you’re exploring about yourself and about the world. It’s a very good tool for children to have.”
“A Barbie era feita para ser arrebentada e colocada de volta no lugar desajeitadamente. Para ter sua cabeça e seus membros removidos. Para ir no microondas. Para ter seu cabelo de boneca cortado. Para participar de orgias de boneca. Ela era um corpo substituto cujo propósito era permitir que sua dona experimentasse. Como o título da matéria da Revista Jezebel em 2017 disse, “Enquanto crescíamos, todo mundo fez coisas sujas com suas Barbies”.
“Eu presenciei minha irmã e suas amigas fazerem certas coisas com as suas Barbies e eu acho que todas nós fizemos.”, diz a Kate McKinnon em uma entrevista para Fandango em junho, arregalando seus olhos pra câmera de uma maneira que sugere que “certas coisas” eram provavelmente muito ousadas. O que não é uma coisa ruim, insiste McKinnon: “É imaginação, é uma jeito de expressar seus desejos internos e coisas que você está explorando sobre si mesma e o mundo. É uma ótima ferramenta para uma criança ter.”
Trecho de Matéria da Vox, “Uma longa história de crianças fazem coisas estranhas com suas Barbies” em tradução livre minha.
Obras que, assim como Barbie, capturam um pouco da experiência de ser uma menina costumam me marcar. Em “Cinco Graças” (Deniz Gamze Ergüven, 2015), Lale testemunha suas irmãs, que eram meninas até ontem, virarem esposas do dia pra noite e tenta fugir de um destino cruel que parece inevitável. Em “Lírios D’água” (Céline Sciamma, 2007), Marie é uma garota encantada pela estrela do time de nado sincronizado e passa por um arco de descoberta durante o filme, sobre si mesma, sobre meninas de maiô, sobre o mundo. Em um dos meus filmes favoritos da vida inteira, “As Virgens Suicidas” (Sofia Coppola, 2000), Cecilia não só não tenta evitar um final sombrio, mas corre, faminta, em direção a ele.
“Você não é nem velha o suficiente para saber o quão ruim a vida fica.”
”Obviamente, Doutor, você nunca foi uma menina de treze anos.”
Costumo dizer que eu tenho trinta e três anos por fora e treze por dentro. De certa maneira, ainda me sinto a mesma menina insegura, vulnerável, tentando decifrar a mim mesma, ao mundo, as outras meninas. Mas quando lembro de mim mesma aos treze, falo de uma época muito específica: um pouco antes de ter a minha primeira menstruação, quando tudo começou a mudar pra pior. Do dia pra noite, eu não podia mais brincar com os meninos, correr, suar, subir em árvores. Precisava ficar sentada com as outras meninas, quieta, porque de alguma maneira eu havia atravessado um túnel e saído do outro lado como uma mulher e mulheres conversam e são imóveis, apenas assistem os homens agirem como meninos para o resto da vida, não importa a idade que tenham. Principalmente quando precisam tomar alguma responsabilidade. Um pouco antes dos treze, também, aconteceu mais um evento canônico: minha mãe pegou todas as minhas barbies (as falsas, estranhas e A Verdadeira), suas roupas, seus móveis coloridos que eu finalmente havia conseguido ganhar de primas e amigas e doou para uma instituição de caridade, com a justificativa de que eu não brincava mais com elas e outras crianças, mais jovens, precisavam mais daquelas bonecas do que eu. Uma decisão, é claro, que ela tomou sozinha, sem nenhuma necessidade de conexão com a realidade.
Fala-se muito, no feminismo, sobre as mulheres, mas acho que precisamos falar ainda mais sobre as meninas. Que elas cresçam seguras e protegidas é o mínimo, mas há mais do que isso. Se eu pudesse, eu evitaria que qualquer menina tivesse que ouvir de novo essa falácia de que “mulheres amadurecem mais cedo”, uma justificativa comum pra abusos de todo tipo. Que elas possam ser meninas por quanto tempo quiserem, talvez pra sempre. Que elas possam ser meninos, se assim preferirem, menines, algo no meio disso, não importa. Ou só crianças mesmo. Brincar, suar, correr, subir em árvores. Sonhar, à noite, em beijar outras meninas sem ter medo de nada. Nunca odiar o próprio corpo, se achar feia ou insuficiente porque não parece com uma boneca que sequer existe, que sequer conseguiria andar ou viver de tão irreal.
Se você quer mesmo saber, eu amei e me decepcionei com o filme da Barbie ao mesmo tempo. Quando vi que a Kate Mckinnon iria interpretar a Barbie Estranha, ela mesma, riscada, com cabelo cortado, fazendo espacate de tanto suas pernas puxadas, eu tive esperança. Era a minha Barbie, a nossa Barbie. E essa é a Kate McKinnon, caso você não conheça. E no trailer, ela oferece uma sandália Birkenstock, um dos maiores símbolos lésbicos que já existiram (aqui, caso você também não conheça) para a Margot Robbie como a pílula vermelha de Matrix, uma chance de descobrir o mundo real. Não é possível que todas essas escolhas tinham sido em vão. Mas assistindo ao filme, eu percebi que se não foram, o significado está só nas entrelinhas. É 2023, eu estou cansada de entrelinhas. Não só a Barbie Estranha não dá nenhuma cantada na Margot Robbie bem ali na frente dela, como faz piada sobre querer ver o pênis do Ken. Isso sim é um desperdício. Uma afronta.
Mas mesmo assim, o filme tem seus momentos mágicos além da cena de abertura que citei no começo do texto. Derramei uma lágrima e ri ao mesmo tempo no final. Fui com a única camiseta rosa no meu guarda-roupa repleto de peças pretas (aliás, uma camiseta do Arlindo, uma HQ nacional, nordestina, premiada, que fala exatamente sobre meninos e meninas LGBTQIA+ - já leu?). E ali, numa sala de cinema cheia de mulheres vestindo rosa, gritando e aplaudindo, eu senti uma mudança na atmosfera, uma certa eletricidade. Sim, nós temos a Margot Robbie como Barbie Estereotipada, mas nós também temos a Issa Rae, a Hari Nef, A Sharon Rooney, a Alexandra Shipp e tantas outras Barbies em diferentes cores, formatos, corpos, personalidades. Temos a Midge e o Alan, ainda bem. E claro, temos a Barbie Estranha, que eu queria que gritasse o que todas nós que brincamos com ela já sabemos, sempre soubemos, mas mesmo assim, em silêncio, deu pra ouvir no escuro que nem a trilha de 2001. Meninas cuja vida nunca mais foi a mesma depois do monolito, depois do sorriso, da piscadela, da menina bonita de maiô. Nós entendemos tudo.
Eu não ia fazer isso, mas pensei: se fosse um homem, ele faria, então por que não? (não respondam). Sim, eu vou me autorecomendar. Escrevi um texto em 2017, na Revista Subjetiva, analisando a Bev, única menina no grupo dos Losers na adaptação de It - Parte 1. Acho que aquele texto conversa com esse aqui, de forma só um pouquinho diferente. Aqui: O Curioso Caso de Bev Marsh.
Desde que assisti duas vezes, fiquei obcecada com a playlist do filme. A música da Lizzo, “Pink”, é perfeita, mas fica aqui o pedido oficial: nós, Barbies em crise existencial constante, queremos a versão COMPLETA do filme, com os pensamentos intrusivos e tudo!!!!!